sexta-feira, 6 de maio de 2011

Nota de abertura

A minha antologia reúne cinco sonetos de poetas de Língua Portuguesa do séc.XX, de temas variados.
Esta minha escolha teve a ver com a tipologia de texto poético que é o soneto. Sempre que leio poesia, a minha tendência é procurar este género poético específico, pois sinto que a sua estrutura regular (duas quadras e dois tercetos) tem a ver com a minha forma de agir, de ser e de estar. Eu identifico-me com a sua apresentação, o que me facilita a sua interpretação e compreeensão.
Deste modo, a estrutura da minha antologia tem a ordem da minha preferência. Para mim, a poesia é uma forma de através de um jogo de palavras e combinação de versos, poder exteriorizar o que sentimos de bom ou mau sem inibição. Assim, iniciarei com um poema que define, de forma sobrevalorizada o poeta, «Ser poeta», e terminarei com o poema «Eu», de Florbela Espanca, que traduz a sensação de como muitas vezes nos sentimos relativamente ao mundo: perdidos. Os outros poemas referem temas diferenciados, mas que fazem parte de mim e da minha sociedade. O prazer que senti ao fazer este trabalho desejo que, em sintonia,  seja partilhado com todos aqueles que o lerem. 

Ser poeta

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
 Do que os homens! Morder como quem beija!
 É ser mendigo e dar como quem seja
 Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
 
 É ter de mil desejos o esplendor
 E não saber sequer que se deseja!
 É ter cá dentro um astro que flameja,
 É ter garras e asas de condor!
 
 É ter fome, é ter sede de Infinito!
 Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
 É condensar o mundo num só grito!
 
 E é amar-te, assim, perdidamente...
 É seres alma, e sangue, e vida em mim
 E dizê-lo cantando a toda a gente!

Florbela Espanca, «Charneca em Flor», in «Poesia Completa»

E TUDO ERA POSSÍVEL

Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido
Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido
E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer
Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer
Ruy Belo, Homem de Palavra[s]
Lisboa, Editorial Presença, 1999 (5ª ed.)

Soneto de Fidelidade

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinicius de Moraes, "Antologia Poética", Editora do Autor, Rio de Janeiro, 1960, pág. 96.

E por vezes

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.

David Mourão-Ferreira, Matura Idade, 1972

Eu...

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho,e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!

Florbela Espanca, Charneca Em Flor